Território Kalunga
Se você chegou até aqui é porque provavelmente foi escolhido(a) pelas bênçãos deste mundo. Afinal, ninguém chega às portas do território Kalunga sem ao menos estar influenciado pelas tramas do sagrado e do secreto. Kalunga em Bantô, dialeto africano, sempre significa aquilo que se liga ao sagrado, ao secreto, ao especial.
Kalunga pode ser tanta coisa: o tudo, o nada e ambos ao mesmo tempo. E por detrás de uma palavra tão misteriosa um universo inteiro se aflora. Aqui na Chapada dos Veadeiros, este universo é a história centenária e praticamente desconhecida de uma população africana, negra e cativa, que fez a sua peregrinação forçada até os vãos (vales) das serras na região de Cavalcante, Monte Alegre e Teresina de Goiás. Do seio Africano, estes saíram como guerreiros prisioneiros, e depois foram espalhados pelos mercados da Bahia e Minas Gerais, como mercadorias.
Aos poucos a ganância pelo Ouro tomou de préstimo forçado os seus braços, seus pés e seu suor, para nesta região promoverem a riquezas das cortes, dos coronéis, dos capitaneados. De cada um destes estados brasileiros foram trazidos aos poucos para o nordeste goiano, como escravos. E por séculos, os guerreiros lavraram o seu fardo duro nos aluviões das águas cristalinas da região, garimpando. O tempo, a luta e a agilidade lhes deram a chance de ganharem as matas, de fugirem e serem livres, formando quilombos tão isolados quanto a verdade sobre as suas lendas.
Hoje, mais de 200 anos após os primeiros garimpos na região, este povo se tornou numeroso e talvez o único guardião tradicional deste bioma regional. Somam hoje quase 10 mil habitantes distribuídos em mais de 39 povoados autônomos, oficialmente reconhecidos. Contudo, a sua influência já correu as fronteiras ao norte, a perder de vista pelo gerais do Tocantins, e não pode ser medida.
Em sua ciência antiga, este povo guarda as práticas esquecidas das matas, cantam, dançam, leem os céus para saberem das chuvas e carregam suas gerações como se a primeira força da África Continental nunca se lhes houvesse falhado. São e sempre foram os braços deste mundo tão bravo e arredio que habitam: o extremo Nordeste Goiano. Para as páginas da história, estranhamente, são apenas coadjuvantes.
A água que bebem ainda é a dos rios limpos que possuem, suas casas há pouco ainda eram “lumiadas” pela luz das lamparinas, seus telhados feitos para durar décadas podem ainda ser de palha ou de buriti. A farinha, o saco e até as cobertas ainda podem sair do trabalho manual, do algodão plantado e da ladainha dos fusos caseiros.
Aos olhos de um forasteiro, os Kalungas poderiam ser a remanescência pulsante dos segredos coletivos que perdemos sem nos importar, enquanto sociedade global, na corrida do progresso. Uma fonte de percepções primeiras que esquecemos sobre a humanidade. Mas para quem os olha de dentro, eles também são professores, universitários, engenheiros e mentes pensantes ativas em um mundo tecnológico que urge por inclusão social e por uma educação do campo emancipativa. Para além da terra, este povo sabe instalar placas solares, administrar economias familiares, terminar graduações e mestrados e promover atrativos turísticos seguindo protocolos eco-sustentáveis - usando às vezes outros modelos de inteligência, raciocínio e observação.
Este site é uma pequena tentativa de transportar para o online o fenômeno do povo Kalunga: o passado, o presente e o futuro. De dar as grandes benção aos que chegam, de apresentar aos desconhecidos aquilo que os torna o que são. Por aqui, você encontrará informações históricas, estatísticas, turísticas, folclóricas, poéticas e testimoniais, tudo misturado, sem saber onde uma começa e a outra acaba. Pois assim é também o saber Kalunga, na sua forma orgânica.
Quem navega no site é melhor assumir para si a posição de estudante ou colaborador. Há desafios abertos para o futuro e histórias lacradas no passado. A cena traz a busca de um povo pela sua própria identidade e pela emancipação enquanto indivíduos livres. As soluções já não podem ser fixas ou dogmáticas, as questões são multipolarizadas: progresso e processo histórico, tecnologia e tradição, avanço e manutenção...
Seja como encararmos, eis uma história ser contada, uma história viva que não se pode encaixotar em palavras quaisquer. Estejamos atentos à ela: A História Kalunga
Gabriel leite de Moraes